A escrita é um ato solitário, mas o livro é uma construção coletiva
Conselhos de um leitor aos escritores iniciantes
É comum que as pessoas associem a escrita de um livro a um determinado sujeito que, diante da folha em branco, despeja suas ideias e emoções. Isso não está de todo errado. Escrever é realmente uma atividade solitária, que necessita de concentração e relativo isolamento do mundo. Ao mesmo tempo, é claro, esse ato de construção do texto é também o tecer de diversas vozes do passado, do presente e até do futuro. Porém não é disso que quero tratar. Quero falar não daqueles que gostam de preencher diários com páginas e mais páginas que querem esconder do mundo, num libelo silencioso contra a sociedade. Quero falar daqueles que escrevem e querem ser lidos, daqueles que têm o desejo de fazer com que suas palavras e ideias saiam voando por aí até encontrar olhos atentos. Quero falar de como essa crença de que o livro é uma construção pessoal, além de falsa, é prejudicial. No final, vou relatar uma experiência minha, quase um estudo de caso.
A publicação de um livro é um ato potencialmente antinarcísico. Digo “potencialmente” porque não duvido das capacidades que o ser humano tem de conservar imaculada sua estátua pessoal. O ato de se submeter ao processo de publicação de uma obra, estava dizendo, implica um grau de abertura à alteridade e de desapego à onipotência autoral diante do escrito. Primeiro porque, para que seu livro seja editado, ele precisará passar pelo crivo de editores, profissionais que, além de observar, do seu ponto de vista, a qualidade do texto, vão também observar aspectos mais pragmáticos, como: há alguma expressão ou ideia que pode causar problemas na recepção do livro? Essa obra é interessante para a linha editorial da empresa? Esse enredo conseguirá encontrar um nicho de mercado e trará lucros? Comumente, esse aspecto menos “espiritual” da vida de escritor é escamoteado, pois torna um pouco mais terreno aquela figura que deve ter poderes divinatórios. Acontece que, por melhor que seja um livro, por mais profundo que sejam as reflexões que ele provoque, a editora precisa pagar suas contas. Assim como o próprio escritor. E, para fazer essas boas histórias circularem, é necessário que a coisa não fique encalhada no estoque. A não ser que você consiga publicar por uma editora estatal como a Cepe ou que tenha muita amizade com os donos de uma editora, seu livro precisa ser pensado também como produto a ser vendido. O que não tem nada a ver com publicar livros ruins ou bobos. Atualmente, livros excelentes têm sido sucesso de vendas.
Suponhamos, então, que um livro hipotético passou pelo crivo de uma editora e foi considerado apto para a publicação. Inicia-se, na sequência, o trabalho de edição, em que algumas sugestões de mudança serão feitas, e o trabalho de revisão, que não é mero ato de correção: serão apontadas, se o serviço for bem feito, diversos problemas textuais que podem prejudicar a compreensão e a qualidade do texto. É claro que a decisão final, nesses casos, será sempre do autor, mas dificilmente todas essas mudanças seriam possíveis sem a ajuda de outros olhos. Por último, antes de chegar ao público, esse livro receberá um projeto gráfico... que também modificará seu sentido, pois dará maior ou menor atenção a alguns aspectos da obra. E sim, julgamos o livro também pela capa, isso é inevitável.
O último estágio, embora costume ser associado à glória, é o que revela o caráter mais profundamente coletivo de uma obra editada: o contato com as diversas leituras. Os escritores e a crítica especializada até tentam segurar as interpretações, e às vezes até conseguem, mas o jogo da leitura não é decifração, tem em seu âmago o imprevisível e o aleatório. E determinadas opiniões podem vingar e influenciar de vez a recepção que essa nossa obra do mundo das suposições receberá. Sem falar que, se o autor desse livro fizer sucesso, terá de lidar com adaptações audiovisuais de seu texto, que funcionam como mais uma “corrupção” das suas intenções iniciais.
É claro que, após tudo isso, toda essa invasão ao livro de nosso humilde autor hipotético, é ele quem receberá o reconhecimento, pois foi quem idealizou a obra inicialmente. Porém é inegável que, sem toda essa dilaceração por que um livro passa, se seguir os ritos comuns, o resultado seria bem diferente. Tudo é muito imprevisível nesse universo, mas, em geral, o apego narcísico a uma obra lhe será demasiado prejudicial, justo por seu caráter essencialmente coletivo. O texto, antes de qualquer coisa, é produto e produtor da cultura. E é ao mundo que ele é direcionado: então que siga seu curso. Ao fim do processo, não será o mesmo livro, mas tampouco será um outro. Só se acreditará que houve uma “corrupção” pelo contato com a alteridade se se acreditar na fantasia de um livro monológico, código hermético.
Apesar de não ser um escritor, o que recomendo a todo aquele que deseja ser é: faça o seu manuscrito circular o máximo que puder. Se possível, contrate uma leitura crítica. Peça para que um amigo leia, dê sugestões e seja o mais aberto para lidar com elas, mesmo que isso acarrete a frustração de ter feito algo que, de início, não seja assim tão bom: embora tenha descrito o processo de publicação dum livro na atualidade, esse processo não é exatamente novo e muitos dos ficcionistas de que você gosta acatavam conselhos. Caso famoso é o de Guimarães Rosa: antes de vir a lume, Sagarana ficou em segundo lugar num concurso literário, que tinha como um dos jurados ninguém mais ninguém menos que Graciliano Ramos, e recebeu diversas críticas, pois era um livro bastante irregular. A versão efetivamente publicada está cheia de modificações.
Agora um relato pessoal. Como já disse, não sou escritor, mas tenho a felicidade de conhecer alguns e acompanhar o processo de publicação de seus livros. Muito do que aprendi a respeito do mercado editorial vem daí. Ano passado, conheci Larissa, que estava na graduação de Letras. Após alguns meses de contato, ela me pediu para enviar um romance que havia escrito. Esse romance, antes de chegar a mim, tinha já sido lido por um professor da universidade de que gosto muito e, conhecendo-o, sei que, só de ter lido e comentado seriamente, aquilo poderia ser uma obra que valia a pena. De início, claro, fiquei com medo, pois sei como escritores costumam reagir quando alguém não enche sua obra de elogios (e eu não consigo não ser sincero nesses casos). Quando li aquele romance, já depurado com as críticas desse professor, embora ainda tenha enxergado outros defeitos, fiquei verdadeiramente impressionado com a qualidade da escrita, sobretudo por ser o primeiro livro, de uma pessoa jovem e sem tantas leituras na bagagem. Li com bastante atenção, ela ouviu tudo com igual atenção e, após alguns meses mexendo no manuscrito, o enviou para análise nas editoras. Três responderam e as três aceitaram publicar o romance, inclusive sem que fosse preciso qualquer financiamento por parte da autora. Estamos agora numa segunda leitura antes de reenviar à editora que ela selecionou. Fiquei muito feliz porque pude acompanhar ainda mais de perto a criação de um livro que, mesmo se não conseguir se inserir nesse mercado tão competitivo da literatura contemporânea, certamente será uma obra para emocionar os que leiam. Considero parte fundamental disso, para além do talento de Larissa, sua coragem de mostrar o que escreveu para outras pessoas e a sua humildade em acatar as críticas e as sugestões.
Sim, o texto acaba aqui. Não, não se preocupe, eu não quero te vender curso ou serviço de leitura crítica! Afinal,
Eu sou Roberto de Luna e escrevo A troco de nada.
Gostei!
Prazer Roberto.
Já pensei em publicar, hoje me realizo com meu Um Dedinho de Prosa, aqui neste nicho.
Um texto de cada vez.
Também Free.